A escritora Ruth Rocha tem 93 anos, mas diz que aparenta só 92. A brincadeira vem de uma conversa que teve com uma criança há quase cinco décadas. “Era um menininho. Ele me perguntou: ‘Quantos anos você tem?’ Eu falei: ‘Tenho 47’ e ele: ‘Mas você não parece! Você parece ter uns… 46!”
Autora de clássicos como “Marcelo, Marmelo, Martelo”, “O Reizinho Mandão” e “A Primavera da Lagarta”, conversou com a BBC News Brasil na sala de sua casa, na cidade de São Paulo.
Apesar de ter diminuído o ritmo, a escritora segue na ativa, com a ajuda da família. Continua escrevendo livros, reeditando obras e firmando parcerias com artistas renomados, além de ter renovado o contrato de exclusividade com a editora Salamandra, do grupo espanhol Santillana, por mais 15 anos. O contrato agora vai até os seus 108 anos.
Rememorada aos risos, essa é uma das muitas histórias que coleciona de sua carreira, em que se tornou ícone da literatura infantil. Com mais de 200 livros publicados, 40 milhões de exemplares vendidos e forte presença nas salas de aula, tem sua obra traduzida para 25 idiomas, além de oito prêmios Jabutis.
Vestida com um conjunto de cor clara, maquiada, com o cabelo grisalho muito bem penteado e óculos pretos modernos, a escritora driblou com humor e lucidez a dificuldade de audição e o cansaço físico e mental inerente à idade. “Escrevo o que eu penso, o que eu sinto, mas eu não ensino muito, não. Eu conto as coisas que eu acho interessantes. Livro tem que ser interessante, divertido”, afirma.
Um dos lançamentos previstos ainda para este ano é “Encontro de Histórias” (ed. Panini), um livro em quadrinhos da Turma da Mônica junto com a Turma do Marcelo, personagem que o próprio Maurício de Sousa quis desenhar. A parceria inédita, que era um desejo antigo do quadrinista, foi anunciada na Bienal do Livro de São Paulo em setembro.
Já a colaboração com outro cartunista célebre, Caco Galhardo, renderá o título “A Lebre e a Tartaruga”, que vai fazer parte dos “Recontos Bonitinhos” (ed. Global), coleção com versões de contos clássicos em rimas e versos.
Para o ano que vem, a família prepara o relançamento de dez livros remodelados em formato premium e com ilustrações inéditas. “Um dos trabalhos que faço é buscar ilustradores novos, com mais diversidade também, para incluir na obra dela”, afirma Mariana, sua filha.
É Mariana quem comanda um esforço pela internacionalização da obra da mãe, que já recebeu um dos maiores reconhecimentos mundiais da literatura infantil, ao ser incluída na Lista de Honra do Prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Prêmio Nobel do gênero.
Neste ano, “Marcelo, Marmelo, Martelo”, o maior best-seller da escritora, foi publicado nos Estados Unidos —com o nome “Marcelo Martello Marshmallow”— e em Portugal.
Para o portfólio internacional, Mariana selecionou dez livros considerados mais universais. Ela vê os países da América Latina e os Estados Unidos como especialmente promissores, mas também pensa em mercados mais longínquos.
‘Envelhecer é muito chato’
Para a autora, “envelhecer é muito chato”. Hoje, um problema de visão dificulta a capacidade de leitura, mas a literatura continua sendo sua companheira graças à irmã Rilda e ao neto Pedro, que leem para ela —Rilda, todos os dias, durante uma hora, por telefone; Pedro, pessoalmente, duas vezes por semana. “Não fico sem livros na vida”, diz a escritora.
Com Rilda, já foram mais de 70 obras lidas. Com Pedro, 13, sendo que cinco são do mesmo autor, Ítalo Calvino. O neto costuma postar vídeos no TikTok falando das obras que lê com a avó e recebe enxurradas de comentários de fãs da autora.
“Ele lê muito bem, é muito expressivo. Agora, estamos lendo contos do [Ernest] Hemingway. “Cem Anos de Solidão” [de Gabriel García Márquez] eu já tinha lido e ele releu para mim, adorei”, diz.
“Não tenho a mesma alegria de fazer coisas, estou mais fraca, não saio muito. Mas sou feliz. Tenho uma família ótima, tenho saúde. Para a escritora, crianças continuam gostando de livros, mesmo com o apelo de celulares e outras telas. Sua sugestão para incentivar o amor pela literatura é começar despertando o gosto pela língua. “É importante conversar com as crianças desde que elas são pequenininhas, cantar, falar poesia, trocar ideias”, diz.
Era assim que ela fazia com Mariana, filha única de Ruth com o empresário e ilustrador Eduardo Rocha, com quem foi casada até ele morrer, em 2012. “Minha filha queria saber coisas diferentes. Ela dizia: ‘Eu quero a história dessa coisa de vidro aqui. A história daquele vaso, de um cinzeiro, das estrelas’. Eu não sabia, mas ficava inventando.”
Outra recomendação é que os pais cultivem o próprio hábito de leitura. “Leitura também é exemplo. As crianças gostam de brincar de adulto. Elas brincam de médico, de pirata, de aviador. Se ela vê os adultos lendo livros, vai querer imitá-los.”
Obra atravessada pela ditadura e pela covid-19
Em dezembro de 2023, Ruth lançou “O Grande Livro dos Macacos”, com curiosidades sobre esses animais e sobre a Teoria da Evolução de Charles Darwin. Foi uma forma de se contrapor ao negacionismo da ciência que a angustia durante a pandemia de covid-19 —dedicou o livro aos cientistas.
Duas das páginas trazem desenhos de Miguel, neto da autora, que é designer. “Ele não faz esse tipo de desenho, fez porque eu pedi”, diz a avó, orgulhosa.
A indignação com questões políticas e sociais foi ponto de partida para histórias em outros momentos de sua carreira. Livros como “O Reizinho Mandão”, por exemplo, criticavam o autoritarismo em plena ditadura militar, mas não chamavam a atenção dos órgãos de censura. “Ninguém levava muito a sério literatura infantil, achavam que era bobagem”, complementa.
Ela lembra de quando, ainda na ditadura, recebeu um prêmio diretamente das mãos de um Ministro da Educação por outra obra que tocava em assuntos como poder e democracia: “O Rei que Não Sabia de Nada”. Se os livros sobre governantes autoritários enganaram os censores, não passaram batido pelas crianças.
A escritora conta que em uma ocasião, após contar a história de “O Reizinho Mandão”, um pequeno leitor disse a ela: “Mas esse é o presidente da República!”. Ela tentou disfarçar. “Eu falei: ‘Não, imagina, é um irmão mandão, um pai mandão’. Aí ele perguntou: ‘Você não tem medo da polícia?’ Respondi que sim, tinha muito medo.”
Como tudo começou
Formada em Ciências Políticas e Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Ruth começou a escrever histórias infantis a pedido de uma amiga, Sonia Robatto, diretora da Recreio —revista da editora Abril que a própria autora dirigiu posteriormente.
A sugestão de Sonia foi bastante veemente. “Ela queria que eu fizesse uma história. Eu falava: eu conto histórias para a Mariana, mas eu não sei contar outras histórias. Ela ficava: conta, conta, conta, conta. Até que um dia, ela me trancou na casa dela. E eu sentei e escrevi”, lembra a escritora.
Essa primeira história que publicou, até hoje muito conhecida dos leitores, é sua versão do clássico “Romeu e Julieta” com duas borboletas como personagens: uma azul e uma amarela, que não podiam brincar juntas por terem cores diferentes.
Era, segundo ela, uma forma de abordar o preconceito sem perder a fantasia e a ludicidade de uma boa história infantil, característica que acompanhou sua escrita ao longo da carreira.
“Os livros dela agradam demais aos professores, são adotados em massa pelas escolas e às vezes as pessoas querem colocar como educativos”, diz Mariana. “É um trabalho que inspira conhecimento e transformação, mas ela sempre fala: minha obra não é didática.”
A autora fala que sua intenção é despertar nas crianças o mesmo prazer pela literatura que tem desde sua infância, quando ouvia histórias contadas por seus pais e avós e pegava livros emprestados toda semana em uma biblioteca.
De suas 218 obras, ela diz que não tem uma favorita, mas admite que algumas são especiais, citando “Marcelo, Marmelo, Martelo”, “Quando eu Comecei a Crescer” e “Um Cantinho Só pra Mim”. Esses dois últimos têm um forte teor autobiográfico, segundo Mariana.
Reconhecimento que atravessa gerações
Mariana conta que recebe muitas manifestações de carinho de leitores de diferentes gerações. “Minha mãe fez parte da infância e do crescimento de muita gente. Pessoas falam que a literatura dela transformou suas vidas, porque mostrou uma amplitude de possibilidades para o ser humano se desenvolver”, diz Mariana. “Tem gente que chora e eu choro junto. É muito bonito.”
Apesar das mudanças trazidas pela velhice, a escritora continua escrevendo – à mão, em pranchetas. Acabou de terminar uma obra que chamou de “Histórias Pequeninas de Gente Pequenina” e está trabalhando em um texto com uma nova versão do conto de Cinderela.
“Não aguento fazer muita coisa, mas eu gosto muito [de escrever]. É a minha vida”, finalizou a autora.
fonte: Folha de S. Paulo
imagem destaque: Flavia Mantovani/BBC