“Entrar e sair dos livros que moram em prateleiras é um cuidado com o imaginário”, defende a escritora Heloísa Pires Lima, sobre as obras infantis de Karingana – Presenças negras dos livros para a infância. Esse “cuidado com o imaginário” a que Heloísa se refere passa, então, pela representatividade de publicações infantis, que não pode se restringir ao mês de novembro, pela celebração do Dia da Consciência Negra.
Nesse sentido, se o racismo acontece todos os dias na sociedade, e, infelizmente, chega às crianças, a necessidade de promover a educação antirracista é “cotidiária”. Quem defende o termo é a intelectual Azoilda Loretto da Trindade, que teve atuação fundamental na implementação da Lei 10.639/03. O texto prevê a obrigatoriedade da inclusão de história e cultura afro-brasileira nos currículos do ensino fundamental e médio no país.
Vale lembrar que já se passaram 20 anos da implementação desta lei e o resultado vem a passos lentos. Em seu livro “Manual Prático de Educação Antirracista” (Cortez), o educador Allan Pevirguladez atribui essa lentidão ao abismo que há entre a lei e a prática no chão da escola. “Muitos educadores nunca receberam uma formação para essa área do conhecimento”, explica.
Em 2024, o Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, passa a ser feriado nacional. Foi neste dia, em 1695, que morreu Zumbi dos Palmares, último líder do Quilombo de Palmares, o maior do Brasil. Além disso, a data é considerada um marco de resistência e luta do povo negro pelo fim da escravidão e pela liberdade de culto e religião.
Combater o racismo é ter informações que passam pelos livros
Entre as sugestões que Pevirguladez compartilha no livro está a de mostrar para as crianças que pessoas negras foram muito importantes para a construção da intelectualidade no Brasil e no mundo. Isso porque o entendimento contribui para a ideia de que é na diversidade que evoluímos.
“Uma só cultura, um só idioma, uma só identidade, apenas um grupo racial. Por mais importante que possa ser, não podem ser a única fonte de sabedoria e de valores para os mais de oito bilhões de habitantes no planeta Terra”, defende o educador. Ele também é autor da música “o meu cabelo é bem bonito”, sobre valorização e empoderamento para crianças pequenas.
Ao se reconhecerem nas páginas dos livros, as crianças negras podem vislumbrar muitos futuros e ser protagonistas das histórias que escolherem viver, e não as que lhes foram sentenciadas. Ao mesmo tempo, para as crianças brancas, o convite é olhar o mundo de outras perspectivas.
Por isso, o benefício da construção de uma sociedade antirracista é, portanto, de todos. Até mesmo para adultos que não tiveram, na infância, acesso a conteúdos que cuidam do imaginário e convidam a sonhar.
10 livros para pensar o Dia da Consciência Negra
Para estimular sonhos e imaginação, o portal Lunetas preparou uma lista de livros para ler com as crianças no Dia da Consciência Negra e em todos os outros dias. Confira:
“Gênios da nossa gente: personalidades negras”, de Eliana Alves Cruz e Estevão Ribeiro (Malê)
Intelectuais, esportistas, atrizes e atores, escritoras e tantas outras personalidades são apresentadas neste livro. O trabalho de Eliana Alves Cruz foi garimpar estas pessoas e seus feitos, que são um legado inestimável. De cara, as crianças vão lembrar de Rebeca Andrade, nossa maior medalhista olímpica. Além disso, vão conhecer Abdias do Nascimento e Lima Barreto, que pavimentaram o caminho. As ilustrações de Estevão Ribeiro trazem a personalidade dos biografados em diálogo com as infâncias.
“Aleijadinho: Antônio Francisco Lisboa”, de Fabiano Ormaneze e Douglas Reverie (Mostarda)
Este é o mais novo livro da “Coleção Black Power”, que traz a biografia de personalidades negras. São 35 biografias já publicadas, como, por exemplo, Angela Davis, Barack Obama e Lélia Gonzalez. Considerado o primeiro escultor brasileiro, Antônio Francisco Lisboa era filho de uma mulher escravizada com um português. Ficou conhecido como “Aleijadinho” por conta de uma doença que deformou várias partes de seu corpo e resultou em amputações. Ele criou obras únicas, inspiradas na arte barroca, que podem ser vistas em cidades mineiras como Ouro Preto, Sabará e Mariana. Apesar de não poder assinar todas as suas obras, por causa do preconceito racial, se tornou um grande artista.
“De cabeça feita”, Neide Almeida e Beatriz Lira (Quelônio)
Dandara gostava muito de três coisas: palavras, cheiros e cabelos. Desde pequena, aprendeu a experimentar as palavras e se inebriar com os cheiros das festas em sua casa. Gostava de andar com a cabeleira solta mas quando sua mãe a chamava para pentear, era um tormento. Não entendia porque era preciso puxar, esticar, prender. Até que, um dia, ela e a mãe experimentam penteados diferentes, relembrando suas ancestrais. Assim, descobrem um novo prazer de pentear. O título brinca com a ideia de “fazer a cabeça” ao mesmo tempo em que Dandara aprecia a ideia dos diferentes penteados e descobre a realidade à sua volta sobre sua identidade.
“Manual de penteados para crianças negras”, Joana Gabriela Mendes, Mari Santos e Flávia Borges (Cia das Letrinhas)
Mais que um passo a passo para fazer penteados incríveis, este livro é sobre exaltar a beleza das pessoas negras e seus cabelos, repletos de história e significado. Por isso, há também informações sobre a origem de cada um deles e curiosidades sobre cuidados com as madeixas ao longo do tempo. “Do cafuné à história, os penteados deste manual nos lembram e ensinam que o cabelo crespo é pluralidade, possibilidade, resistência e muito, muito amor”, destaca Ana Paula Xongani na quarta capa.
“Com qual penteado eu vou?”, de Kiusam de Oliveira e Rodrigo Andrade (Melhoramentos)
O cenário desta história é a comemoração de 100 anos do senhor Benedito. Os bisnetos decidem, então, presenteá-lo com algo de muito valor: suas virtudes. Conforme avança as páginas, o leitor conhece cada bisneto com seus incríveis penteados e nomes – com origem e significado – e a virtude que trouxe de presente. Entre dedicação, criatividade, bom humor, sinceridade e muitas outras, Kiusam de Oliveira e Rodrigo Andrade mostram aos leitores que a sabedoria africana está entrelaçada. Além disso, passa pelos penteados e toda a história que eles guardam.
“Samba junino”, “Ijexá” e “Capoeira”, de Bárbara Falcón e Rebeca Silva (Ouricinho)
Nesta coleção de três livros, a antropóloga Bárbara Falcón conta para as crianças um pouco de sua pesquisa sobre os patrimônios culturais imateriais do povo africano. Sonzinhos da Bahia é, portanto, sobre música, ritmo e dança. Sempre conduzidos por um adulto que representa “o sábio”, os livros apresentam o “Samba Junino”, manifestação de Salvador que mistura cantigas tradicionais das festas juninas a um ritmo chamado de “samba duro”. Tem também o “Ijexá”, ritmo dos afoxés, que tem entre seus expoentes o Filhos de Gandhi, bloco que desfila no carnaval da Bahia há mais de 70 anos. Por fim, a coleção mostra a “Capoeira”, que é dança, jogo, brincadeira e expressão da resistência. As narrativas têm ilustrações ricas em cores que detalham as manifestações, e ainda informações com linha do tempo e QR codes para conhecer os sons dos instrumentos.
“O catador de histórias”, de Edmar Neves e Afa Vasques (Jandaíra)
Para além da religiosidade nas narrativas dos Orixás, os contos deste livro, que na cultura iorubá são chamados de Itans, trazem ensinamentos de outras vivências. Há a importância de saber ouvir e transmitir conhecimentos, de confiar na capacidade das pessoas e de não julgar ninguém pela aparência. Nesse sentido, é pela tradição oral que esses ensinamentos passam de geração em geração. No livro, em texto e imagem, apresenta-se aos leitores como Exu levou os segredos do oráculo de Ifá para a humanidade. Além disso, mostra como o guerreiro Ogum ensinou a arte da caça para o irmão mais novo, Oxóssi, e como nasceu a amizade entre os orixás Omolu e Iansã. As ilustrações utilizam texturas, recortes, colagens e pinturas feitas à mão para representar a beleza e a força dessas narrativas.
“A coragem de Danso”, de Kiusam de Oliveira e Paulica Santos (Perabook)
Danso tem um nome com significado: é confiante, assim como o beija-flor. Desde pequeno já quer voar para fora do ninho e experimentar o mundo com olhos de deslumbramento. Um bebê cheio de graça guia o leitor pelas suas explorações do mundo, com a confiança de quem sabe o que quer. Antes de tudo, ele sabe que pode confiar em si, pois é incentivado pela mãe. A delicadeza dos versos de Kiusam de Oliveira se encontram com as graciosas ilustrações de Paulica Santos. Ao fim da leitura, os leitores também ficam repletos de coragem.
fonte: Lunetas