A jornada de representantes dos povos originários pela quebra de estereótipos sobre a diversidade indígena e a luta contra o preconceito é constante. Em 2022, essa batalha teve uma vitória com a mudança da denominação “dia do índio”. Por decreto de uma Lei Federal, o dia 19 de abril passou a se chamar Dia dos Povos Indígenas. Ainda assim, porém, existem outras barreiras a vencer, como propor atividades mais adequadas para lembrar a causa indígena em sala de aula.
Geralmente, as escolas pedem às crianças para pintar um cocar de papel, passar tinta guache no rosto ou dançar em roda. Mas caracterizar crianças brancas como indígenas sem o diálogo sobre cultura, cosmologias e diversidade linguística dos povos é uma prática problemática.
Edson Kayapó, historiador e professor doutor em Educação do Instituto Federal da Bahia e de Ensino em Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal da Bahia pontua ao portal Lunetas: “estudantes pintados sem entender adequadamente a que isso se reporta é pegar uma tradição que é real e viva e levar para o campo do folclore ou do exotismo. Isso, definitivamente, não deve ser feito”.
A abordagem das escolas não indígenas, reproduzidas a cada 19 de abril, muitas vezes ultrapassa a questão da apropriação cultural, como ressalta o professor. “A terminologia da ‘apropriação cultural’ para essas práticas talvez seja muito leve. Por isso, pode ser considerado racismo. É um preconceito vindo de uma cultura etnocida de raízes que tratam com total desrespeito os povos indígenas” afirma.
Com o objetivo de orientar profissionais da educação sobre o combate aos preconceitos e a formação de uma educação antirracista, o caderno “Mulheres: corpos territórios indígenas em resistência”, produzido pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), destaca que a educação escolar silencia e invisibiliza as culturas dos povos indígenas e de outras populações.
“A educação escolar esteve neste lugar de opressora para nossos povos durante séculos, como arma, com propósito da destruição do nosso conhecimento, subalternizando nossa ciência e deslegitimando nossa pedagogia.”
Ao possibilitar a construção autônoma das próprias narrativas dentro de espaços educativos, os povos indígenas se firmam não apenas como parte da história passada, mas também de uma história em curso. “Amansar o giz é ressignificar a escola indígena, refletindo sobre os desafios e a importância da educação territorializada”, destaca o documento.
Abordagem deve ir além do 19 de abril
Embora a Lei 11.645/08 preveja a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas, ainda percebe-se pouco engajamento para refletir a pluralidade e os problemas sociais enfrentados pela população indígena. “A cultura indígena deve estar dentro do currículo das disciplinas de história, arte, geografia, literatura e língua portuguesa. Não deve ser só pontual no dia 19 de abril”, defende Kayapó.
Para ele, a desconstrução do pensamento colonizador, que vicia o olhar para os povos indígenas como uma alegoria, parte da reflexão de que manter as tradições não é estacionar no passado, por isso, é fundamental entender os indígenas como grupos contemporâneos.
“A sociedade brasileira continua cobrando dos povos indígenas características dos tempos coloniais, pensando que todos andam nus e que não têm direito ao uso de tecnologias. Isso não tem cabimento, porque não vivemos no passado; é o passado que vive em nós, no presente”.
Nas escolas indígenas, crianças se juntam às tradições
No Pará, mais de 2.800 alunos estudam em escolas indígenas que atendem 43 povos, de acordo com a Secretaria de Educação do Estado. Na escola Wyra’awa Inatahya, da Terra Indígena Parakanã, município de Novo Progresso, o 19 de abril vai ser incorporado como um dia de ouvir as pessoas mais velhas da comunidade. O professor e supervisor educacional, Tarana Parakanã, contou ao Lunetas que a proposta das atividades é fazer com que as crianças observem seus familiares no dia a dia e aprendam com eles o artesanato, a pintura corporal e a confecção de cocar.
Além da prática, os alunos também participam de rodas de conversas com os mais velhos, que contarão histórias dos Parakanã e suas tradições. “Eles vão para a mata tirar o jenipapo para fazer a tinta e se pintar. Vamos explicar todos os significados de fazer uma veste com a tinta para se proteger do espírito mal e não deixar entrar no corpo. É importante que escutem os mais velhos para se orientarem e saber por que fazem parte da comunidade”, conta o professor.
Para ele, a data serve para lembrar os mais novos que a cultura dos povos originários não pode ser perdida. “Damos aulas para as crianças saberem qual é a nossa cultura. Cantamos na nossa língua e também em português, mas sempre orientando que elas não esqueçam quem são e por que estão aqui”, explica.
Em Santa Luzia do Pará, na escola Félix Tembé, na Terra Indígena Alto Rio Guamá, brincadeiras tradicionais, como cabo de guerra, “briga de galo”, arco e flecha e corrida para apanhar uma jaca do pé, são orientadas pelos professores e acompanhadas pelas famílias dos alunos e toda a comunidade.
O professor Bewãri Tembé explica que, um dia antes, os homens saem para caçar e pescar o alimento que será servido em um almoço coletivo. Quem fica na aldeia, organiza as competições e faz a pintura corporal nos moradores. “Tudo vai ser tradicional para as crianças aprenderem como a comunidade vive e o que vem da nossa cultura. Do branco, só mesmo o futebol que elas vão brincar”, conta.
Para ele, é necessário que as escolas não indígenas tenham respeito às tradições originárias e trabalhem de maneira mais embasada a temática em sala de aula, deixando de lado atividades que reforçam estereótipos de seu povo.
“Aqui, quem usa capacete (cocar) são apenas as lideranças e os pajés. É algo que tem muito significado para nós, assim como a pintura no corpo, que é sagrada. Não pode usar de brincadeira, sem saber o significado”, explica. Para os Tembé, a pintura corporal só é feita sob orientação dos mais velhos. Se a pessoa não tiver autorização do pajé, não pode se pintar.
Ao refletir sobre as práticas das escolas não indígenas para a valorização dos povos originários, o professor argumenta que não é uma tarefa complicada. “Os professores deveriam ter acesso a materiais exclusivos dos povos indígenas, que mostrasse a nossa realidade, e cada escola poderia ter um profissional que estudasse as nossas causas para orientar os outros”.
fonte: portal Lunetas